quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Folhas levadas pelo vento

Desde que a avó falecera, ela nunca mais voltara àquela casa. Já tinham passado quase 30 anos. Quando era miúda sentia-se imensamente feliz por lá e adorava estar com os avós. Durante a sua infância e adolescência, assim que acabavam as aulas, não descansava enquanto os pais não a levavam para a aldeia onde passava, praticamente, todo o Verão. No jardim, sempre bem cuidado, a sua árvore preferida era o velho plátano. O seu avô arranjou-lhe um banco de madeira, onde se colocavam almofadões no Verão, para ela poder estar confortavelmente instalada ali mesmo, na sombra do plátano. Aí ela passava grande parte dos dias de férias na aldeia, era o seu refúgio, onde ela sonhava com o futuro. Ali chorou quando perdeu o avô e, alguns anos mais tarde, a avó. Quando isso aconteceu, não mais fora capaz de lá regressar.

Sem eles, a casa já não era um lar acolhedor. O rádio do avô já não enchia o silêncio e a cozinha já não cheirava a bolos acabados de fazer. Até o banco do plátano desaparecera. O primeiro beijo dera-o ali mesmo, ao seu primeiro amor, no Verão dos seus 16 anos. Ele era um pouco mais velho e também passava o Verão na aldeia. Já em pequenos tinham brincado juntos mas, durante os primeiros anos da adolescência, não se tinham cruzado. Naquele longínquo e quente dia de Julho, quando se reencontraram, a química foi imediata e não se largaram todo o Verão descobrindo juntos o que era o Amor. No banco do plátano, conversavam horas e horas até a avó dela achar que já era muito tarde e chamá-la para dormir. Numa dessas noites de Verão, engoliram o medo que os dominava e beijaram-se timidamente. Quando o Verão acabou despediram-se lavados em lágrimas, cada um para a sua cidade, entre promessas de cartas diárias e um reencontro no Verão seguinte. Mas as promessas foram arrastadas pelo vento do Outono, por novidades do ano escolar que começava e por novas centelhas de amor que adormeceram a doce lembrança daquele amor de Verão. Ela nunca gostara do Outono por isso mesmo. Era uma estação em que se sentia sempre nostálgica.

E, quis o destino, que se viesse despedir da casa dos avós precisamente em Outubro, no início do Outono, e não conseguia fugir da imensa melancolia que a invadia. A casa, onde fora tão feliz, ia ser vendida. A mãe e os tios tinham recebido uma proposta irrecusável nem percebera bem de quem. Nem sequer tinham posto a casa à venda, não percebia como é que alguém se lembrara de a querer comprar. Era a última hipótese de lá voltar, a escritura estava marcada para a semana seguinte. Durante todos os anos em que não voltara fisicamente, voltara em espírito. Sempre que a vida lhe trazia sofrimento, refugiava-se nas memórias daquele tempo e sentia uma vontade imensa de se refugiar na sombra do plátano. No momento da despedida, encostou-se ao tronco e passou em revista os piores e os melhores momentos da sua vida. Lançou-os ao vento como as folhas secas que caiam da árvore.
O sonho de se tornar escritora ficara pelo caminho e contentara-se em ser professora de português. Com vinte e poucos anos casara, vestida de noiva e numa igreja repleta, com aquele que considerara o “homem da sua vida” e com quem pensava envelhecer. O casamento durou 6 anos e acabara entre mentiras, traições e dor pela morte de mais um sonho. Uns anos mais tarde conhecera um homem maravilhoso com quem viveu 18 anos muito felizes mas a vida também o levara, abruptamente, através de um enfarte de miocárdio. De qualquer das vezes sentira vontade de morrer mas o amor dos filhos fora fundamental para ela se levantar. O amor dos filhos e a recordação da imagem de Filipe. Quando ficara sozinha, tivera muita vontade de o procurar, de saber o que tinha sido feito dele mas agora já era tarde para fantasiar como uma adolescente.

O ranger do portão a abrir sobressaltou-a mas pensou tratar-se do tio que lhe emprestara a chave. Sem se virar foi dizendo:

- Ainda nem sequer entrei em casa. O tio já vinha buscar a chave?

- Não, vim ver se eras mesmo tu ou se era uma partida do meu coração.

Ela sentiu um arrepio na espinha, só podia estar a sonhar. Aquela voz era muito parecida com a voz de Filipe. Não tinha coragem para se virar. A pessoa que entrara tocou-lhe no ombro:

- Desculpa se te assustei…

Sim, era mesmo o seu primeiro amor, mais velho, com rugas e cabelo grisalho mas com o mesmo olhar vivo e penetrante. Ela encarou-o mas estava sem palavras:

- Como é que possível… o que…

- Não sabes?! Sou eu que vou comprar esta casa. Vou mudar-me aqui para a aldeia e adoro esta casa, este jardim. Fui muito feliz aqui, sabes? – Disse ele fazendo-lhe um carinho no rosto. – Vamos entrar, temos mais de 30 anos para pôr em dia.

Os dois conversaram durante horas. Ele tinha ido trabalhar para a Alemanha e lá tinha casado mas agora estava divorciado. Depois do divórcio, Filipe olhou para a vida stressante e competitiva que levava e decidiu que era chegada a hora de trocar Frankfurt pela aldeia dos avós.

- Também alimentei a esperança de te reencontrar. Aos longos destes anos todos, quando passava por momentos difíceis no meu casamento, imaginava como seria se tivéssemos continuado juntos, como seria a nossa vida, como é que estarias… - disse ele.

Ela sorriu dizendo:

- Eu também me lembrei muitas vezes de ti mas agora já é tarde. Não podemos recuperar estes 30 anos.

- Tarde porquê? Lá porque estamos no Outono da vida não quer dizer que não seja possível sermos felizes. – E, aproximando-se dela, beijou-a com a mesma doçura de outrora.


Texto de ficção escrito para a Fábrica das Letras

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